quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O que não contei a ninguém

Hoje quero-vos falar de um tema diferente, de algo que está comigo desde que nasci e, que, por consequência também está aqui na Zâmbia. Nasceu comigo, cresceu comigo, viajou comigo ... mas mesmo assim a nossa relação não é a melhor.
Hoje quero falar-vos de paralisia cerebral. Pensei duas, três, quatro, cinco vezes antes de escrever sobre isto. Não é o que eu gosto mais de falar ou de pensar, mas às vezes sinto necessidade de partilhar.
Quem me conhece, sabe que ando de uma maneira estranha e não muito normal. Também sabe que tenho alguma dificuldade em certos movimentos com as minhas pernas que envolvem equilíbrio e flexibilidade. Às vezes tropeço e caio. Mas, o que muitas pessoas não sabem é a origem deste "problema".
Nasci de seis meses e, portanto, fui uma bebé prematura. Durante o meu nascimento, sofri de falta de oxigénio no cérebro, o que me provocou paralisia cerebral, que apesar de leve, não tem cura.
Lembro-me pouco dos meus primeiros anos. Sei que fui submetida a vários anos de tratamentos (especialmente fisioterapia), mas não me lembro de nenhum.
As minhas lembranças começam no fim da escola primária e no início da escola básica. Lembro-me de mudar de escola e lembro-me de me sentir diferente. Lembro-me também de sofrer de bullying pelo menos até ao 9º ano de escolaridade. Lembro-me de não gostar da escola, mas achar que era a única coisa em que era boa. Lembro-me de ser posta de lado, apesar de fazer todos os esforços para me integrar. Lembro-me também das pessoas de fora acharem que eu não me relacionava o suficiente com os meus colegas de escola. Tudo isto deixou uma grande marca em mim que, às vezes, ainda dói.
A escola básica acabou e começou o ensino secundário. Foi aí que me apercebi que, mais do que ser diferente fisicamente, tinha uma maneira de ver as coisas um pouco diferente da maioria. Não estava interessada em "seguir o rebanho" e fazer tudo o que as outras pessoas faziam. No entanto, sentia-me um pouco confusa e com medo de não ser aceite. Na altura, tinha memórias vivas e aterrorizadoras de pessoas que me discriminavam por eu ser deficiente. Nunca gostei da palavra "deficiente". Dá-me arrepios.
Foi também aos 16 anos, durante o ensino secundário, que tive a confirmação pelos médicos que nada havia a fazer no meu caso para além de exercício físico regular, que podia resultar em pequenas melhoras na coordenação e equilíbrio. Devo confessar que tinha uma pequena esperança que algo pudesse mudar naquela altura, algo que me fizesse mais normal, que fizesse com que as pessoas gostassem mais de mim.
Na universidade, foi tudo diferente. As pessoas em geral aceitaram-me sem grande problema. Claro que sempre houve pessoas que faziam pouco de mim, mas não muitas. Comecei a falar mais abertamente sobre o assunto, o que antes não conseguia fazer.
Mesmo assim,durante anos, evitei chamar muito à atenção, mostrar as minhas pernas ou pés ou mesmo andar em frente a quem não conhecia. E, apesar de ter que fazer exercício físico, evitei fazê-lo à frente de muita gente. Tive medo de ser gozada novamente e de me sentir como se fosse lixo. Isto fez-me perder muitas idas ao ginásio, aulas de pilates ou de yoga.
Esteja onde estiver, o medo de não ser aceite, vem comigo. Umas vezes mais fraco, outras vezes mais forte, ele marca sempre presença. Umas vezes consigo derrotá-lo, outras não.
Demorei tempo de mais a perceber que toda a gente tem medos, fraquezas e muito poucas pessoas se sentem confiantes. Demorei tempo de mais a perceber que faço muitas coisas bem, mesmo sendo portadora de paralisia cerebral. Demorei muito tempo a perceber que é bom ser diferente. Mas às vezes distraio-me e esqueço-me do que demorei muito tempo a perceber. Ás vezes, o medo e a tristeza voltam e querem ficar.
Antes de vir para a Zâmbia, tive uma pequena vozinha na minha cabeça que me dizia que era demasiado deficiente para vir. Apesar de este vozinha doer muito cá dentro, contrariei-a e vim na mesma. Queria lutar contra as desigualdades neste mundo, pois sei bem o que é ser diferente.
Nos primeiros meses na Zâmbia, tive desafios. Tropecei em pedras, caí e magoei-me muitas vezes. Podia passar 100 vezes no mesmo caminho e não cair, mas um dia passava no caminho e caia. É sempre assim quando caio. Sinto-me sempre frustrada por não perceber a razão da queda.
Como acontece sempre, cada vez que caía, a voz vem. Se deixo a voz vencer, continuo a cair. Passei um mês assim e a esperança esteve quase a morrer. Até pensei em desistir.
A verdade é que sinto que não valho nada quando tropeço e caio no chão. Sinto-me humilhada. Também me sinto um problema. Na altura pensei: Vim para África resolver problemas e afinal, eu sou um problema?
Outro desafio que tive foi o facto de não conseguir andar de bicicleta. Ainda antes de ver, tentei e cheguei a conclusão que não tinha força ou equilíbrio suficiente para andar numa bicicleta normal. Custou-me muito aceitar isto. Gostava tanto de andar de bicicleta!
Apesar destes desafios, nunca fui discriminada aqui na Zâmbia.
Há uns dias fui às escolas que receberam as bicicletas e atrelados que eu e a minha equipa angariámos. Fomos de autocarro. Quando chegámos, a pessoa que estava à nossa espera pensava que tínhamos bicicletas, pois tínhamos 7 km pela frente. Um dos meus colegas disse que não tínhamos e que eu não conseguia andar de bicicleta. Pus-me a pensar na ironia de fazer parte de uma equipa que angaria dinheiro para bicicletas, sendo que eu não sei andar de bicicleta. Continuei a andar com a minha mochila às costas. Aqui ando muito, normalmente 7 km por dia.
Quando estávamos quase a chegar, tropecei, caí, rompi as calças e magoei-me. Mais do que a dor no meu joelho (que não foi nada de grave), senti-me triste, humilhada e não consegui conter as minhas lágrimas, o que me fez sentir ainda pior. Há muito tempo que não caía, muito menos em frente a uma pessoa nova.
Quando cheguei a casa da nossa anfitriã, toda a gente sabia do sucedido. A anfitriã ligou ao nosso líder de projecto que lhe disse que eu tinha um problema de saúde. A vergonha disparou.
Odiava o facto de alguém pensar que eu não era capaz de andar, sendo que ando vários quilómetros todos os dias. Odiava o facto de alguém me ter visto naquele momento de extrema humilhação em que até chorei. Senti-me verdadeiramente incapaz de fazer o que quer que fosse.
No final de contas, viemos a perceber que não era suposto termos ido para aquela casa, pois tínhamos que andar 14 km todos os dias. Era suposto ficarmos numa pequena casa de arrumações perto da escola. Foi um erro de comunicação.
Apesar de tudo ter corrido muito bem depois deste incidente, estes momentos fazem-me pensar.
As escolas que visitei estão localizadas nos locais menos desenvolvidos que alguma vez visitei. As pessoas são felizes e gratas por aquilo que têm, apesar de terem pouco ou nada. Sou uma privilegiada em comparação com estas pessoas, o que me faz pensar que deveria estar grata pelo aquilo que tenho e não me culpar pelas coisas que não posso mudar.
Tenho sorte por ter nascido com paralisia cerebral leve e me movimentar sem ajuda. Tenho sorte por ter tido educação e  oportunidades variadas, incluindo vir para a Zâmbia trabalhar num projecto de ajuda ao desenvolvimento.
Tenho perfeita consciência que, apesar dos desafios que posso encontrar, sou privilegiada. Mas nem sempre é fácil.
Não escrevi este post para terem pena de mim. Não preciso disso. Escrevi este post para partilhar algo que raramente partilhei com quem quer que fosse, para por cá para fora o que está há muitos anos entalado na minha garganta.
Algumas pessoas pensam que eu sou forte por fazer coisas diferentes. Eu não concordo. Acho sim que continuo na luta por mim e por todos aqueles que, de alguma forma, são diferentes. Algumas vezes ganho vantagem, outras vezes perco. Mas continuo.