sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Chapadas da vida

Confusão, buracos e poeira. Foi o meu primeiro grande choque na Zâmbia, mais especificamente na estação rodoviária de Lusaka, juntamente com toda a viagem que fizemos de Lusaka a Ndola.
Depois deste choque, muitos outros vieram. Choques os quais que me abriram os olhos à força. Verdadeiras chapadas da vida.
As diferenças culturais deixam-nos vulneráveis ao inevitável encontro com a pessoa que somos.
Daí resultam os choques com o nosso íntimo. Por as coisas serem diferentes do que estamos habituados, o nosso muro de protecção cai e as diferenças acertam-nos como balas de canhão e põem em causa o que nós somos e o que fazemos. Pior de tudo, até nos levam para gavetinhas que pensávamos que já não tinham lugar na nossa alma.
Sair da zona de conforto é uma luta constante com o nosso ser, mesmo que o nosso principal objectivo não tenha seja esse. Foi o que aconteceu comigo.
Queria ir para a Zâmbia para ajudar comunidades e fazer pelo tornar pelo menos  vida de uma pessoa melhor. Na minha inocência, antes de ir para a Zâmbia, pensava que tudo iria correr pelo melhor porque tinha muita vontade de ajudar e, apesar das diferenças culturais, nada me iria deitar abaixo porque a minha vontade era muito grande. 
Apesar de ter cumprido o meu objectivo, estava muito enganada. A Zâmbia desarmou-me. Os dias  não foram todos bons (nem todos maus) e pensei em desistir. A razão deste acontecimento é simples: mais do que ter tido privações físicas, tive privações psicológicas - algo que ainda não recuperei por completo. 
Não consigo bem descrever a minha evolução durante estes seis meses. Quando penso na Zâmbia,  penso nas crianças com quem brincava, os meus alunos de inglês e de leitura, as meninas e meninos dos dormitórios  da escola, as vilas sem electricidade, a clínica onde fazia as apresentações, os restaurantes, os sorrisos de toda a gente, os “how are you?” a toda a hora,os meus gatos lindos, os meus colegas e a nossa cadela adoptada. 
Porém, também me lembro das minhas lágrimas, lembro-me que as coisas não correram como esperava. Lembro-me que me senti sozinha, sem ninguém para falar das coisas que me interessavam, pois por vezes, entre voluntários, não nos interessávamos pelas mesmas coisas e com os locais era difícil de falar sobre alguns interesses, pois eles não nos compreendiam.
Agora que cheguei a Portugal, não consigo explicar o que se passou. Não consigo descrever o misto de sentimentos que houve nestes 6 meses. Não consigo explicar às pessoas o quanto penso nas pessoas que conheci lá e o quanto é que quero ser uma pessoa melhor que era quando parti para o período de voluntariado. Mas tudo isto é uma nuvem cheia de coisas que dá muitas dores de cabeça, talvez por não saber lidar com a situação. 
O que sei é que os seis meses foram intensos. Levei chapadas da vida a todos o níveis. Tive muitas desilusões e muitas coisas que me fizeram acreditar neste mundo. A Zâmbia deu-me humildade para perceber que estou longe de ser perfeita e, mais do que isso, deu-me humildade para perceber que sou muito pequenina neste mundo. 
Esta confusão mental do regresso da intensidade que vivi, por vezes ofusca a ternura, a alegria e o amor que presenciei. Cada vez mais sinto que devo centrar nestas coisas boas que presenciei. Acho que essas foram as coisas mais valiosas.

As minhas lutas psicológicas, essas vão sempre continuar. É uma questão de dar tempo ao tempo e de recuperar das chapadas da vida.

Fotografia: Uma família muito simpática da área rural onde vivia com quem tive a oportunidade de conviver e ajudar.  Uma boa memória que deixa saudades

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